O cantinho do pensamento

Temos tido a oportunidade de ouvir os “causos cabeludos e escabrosos” que os alunos da graduação da pedagogia têm trazido ao estagiar na educação infantil no contexto do estágio curricular obrigatório. Podemos perceber situações mais diversas e adversas possíveis relatadas por eles, sobretudo no que se refere às práticas dos professores, em relação ao “antigo castigo” aplicado à criança nos anos da ditadura. Parece-nos que o mesmo tomou um novo “corpo” em nossa contemporaneidade, recebendo também um novo “meigo” nome: “O cantinho do pensamento”.

Felizmente, como não é mais possível (alias, possível é, não é ético) castigar o corpo das criancinhas, e também não é prudente puni-las com o cerceamento da sua hora de lazer e de brincadeira – porque a criança é sujeito de direitos e como tal tem direito à brincadeira e ao lazer – parece-nos, que se implantou nos campos de concentração infantil, ops… nos campos de educação infantil, este tipo de sanção que de modo “elegante e filosófico” envolve o pensar. Assim os professores aplicam a “punição” à criança que “transgrediu” os combinados estipulados – de forma heterônoma – em sala de aula.

Sobre este cenário temos nos preocupado profundamente e nos perguntado: o que a escola está fazendo e o que quer fazer com as crianças?  Será que a escola e os professores têm noção do que esta prática pode ocasionar à uma sociedade? Em que tipo de cidadão a escola quer transformar o aluno? De qual cidadão a sociedade precisa? Quando a professora soberana, com suas leis também soberanas e jurídicas – que denomina de “combinados”, pois com elas podem controlar a sala de aula – coloca a criança para pensar, quais são as suas verdadeiras intenções poderosas? Seria retirar a criança do meio em que está para tentar resgatar a disciplina da classe? Seria expor o aluno? Banir aquele que transgrediu? Como bem nos lembra Agamben (2002, p.32) “aquele que foi banido por transgredir a lei recebe a culpa do pensar”.
Teria esta, a intenção de separá-lo do grupo, do bando, para que ele possa “pensar realmente em seus atos”? Segundo os estudos da psicogenética, a partir de qual idade a criança é capaz de “pensar de forma autônoma sobre os seus atos”? Quando a criança começa a se constituir como “ser pensante”? Mas, o que é um ser pensante? Como o pensamento pode favorecer uma pessoa e a uma sociedade? Qual a importância do ato de pensar para uma sociedade?

Essas indagações fazem-nos lembrar da obra de Edgar Morin – A Cabeça bem feita – na qual nos deixa igualmente convencidos, como ele o fora, sobre a necessidade de uma “Reforma do pensamento, de uma reforma do ensino.” O autor nos fala sobre a “complexidade”, explicando que complexo é aquilo que é tecido em conjunto, sendo este um dos seus principais argumentos em seu pensamento. “A missão desse ensino é transmitir não o mero saber, mas uma cultura que permita compreender nossa condição e nos ajude a viver, e que favoreça, ao mesmo tempo, um modo de pensar aberto e livre.” (MORIN, 2010, p. 11). Sobre esta fala, será que a escola está ciente da sua função/missão? Quando a criança é colocada no canto do pensamento é possível que ela pense de forma aberta e livre?

Sabemos que a escola usa o conhecimento de maneira fragmentada quando não ajuda a criança a se sentir sujeito sobre o seu conhecimento, quando não favorece relações entre os conteúdos atitudinais com os conteúdos conceituais, quando não contextualiza a realidade e necessidade da criança . Sobre o conhecimento, Morin (2010, p. 15) nos alerta: “O conhecimento pertinente é o que é capaz de situar qualquer informação em seu contexto e, se possível, no conjunto em que está inscrita.” Assim, nos perguntamos: Será que a escola, ou o professor, tenta aproximar esse conhecimento, sobre o comportamento, atitude, ética etc. às crianças ao invés de colocá-las no cantinho do pensamento? Como bem coloca o autor, a mente tem uma aptidão para contextualizar e integrar o conhecimento. Essa é uma qualidade fundamental da mente humana, que segundo ele, precisa ser desenvolvida e não atrofiada. Sabendo que o professor não tem proporcionado esse desenvolvimento à mente da criança, mas ao contrário, tem dado a ela o castigo de pensar, o que poderá acontecer à sua mente e ao seu envolvimento sobre o ato de pensar, sobre o conhecimento e sobre a sua vida?

Quando nos deparamos com tantas questões e desafios para serem pensados, refletidos e transformados, nos deparamos novamente com o grande problema que temos em mãos, sobre o tal do “cantinho do pensamento”. Será que com esta prática não afastaremos a criança do pensar filosófico, pensar político, pensar social, pensar emocional, pensar a vida? São tantos os desafios que esta geração enfrentará, e sobre isso ficamos a refletir: como esta criança se portará diante dos mesmos, sendo “docilmente ensinada”, desde pequenina que o ato de pensar é um castigo?

Segundo os relatos dos alunos estagiários, alguns professores, depois de tirarem as criancinhas do objeto sacrificial, do momento passageiro de abandono por qual passou – ou seja, do “cantinho do pensamento” – explicam o motivo da sua transgressão, dos seus atos irregulares (outros professores nem isso fazem!). Sobre isso nos reportamos a Morin quando fala sobre a diferença entre explicação e compreensão: “Explicar não basta para compreender. Explicar é utilizar todos os meios objetivos de conhecimento, que são, porém, insuficientes para compreender o ser subjetivo” (p. 51). Ou seja, se explicar não leva a uma compreensão, o “cantinho do pensamento” será cada vez mais utilizado, pois a criança continuará sem entender o motivo pelo qual ficou “pensando”.

“É para o aprendizado da vida que o ensino da filosofia deve ser revitalizado” (Morin, 2010, p. 54). Sendo assim, o que a criança pequena poderá associar ao “cantinho do pensamento”? O que ficará marcado para ela em relação ao grandioso ato de pensar? Tendo o pensar como castigo, ela será amiga do saber?

Encerramos aqui a nossa contribuição – com mais perguntas do que respostas – acreditando que temos em nossas mãos um grande problema para ser resolvido, pensado, para ser cuidado, que urge ações efetivas e significativas, pois a cada dia que passa dezenas, centenas, milhares de “cantinhos do pensamento” são decorados com poltroninhas e estabelecidos em larga escala nas instituições de ensino infantil, no qual milhares de corpos infantis são colocados para pensar em seus lindos e dóceis cantinhos, com meigas e fofas poltroninhas. A cada dia que passa as crianças estão sendo preparadas para detestar o “ato de pensar”. Todos os dias, ao invés de promovermos em nossas crianças “cabeças bem-feitas”, teremos crianças com verdadeira ojeriza à reflexão. Se continuarmos desse jeito não obteremos, jamais, a educação de crianças dentro de uma visão sistêmica, numa visão onde os conhecimentos estejam ligados. Desta forma, não teremos uma nova maneira de pensar, não alcançaremos uma reforma do pensamento, e consequentemente não será possível modificar uma sociedade. Urge que cuidemos desta “nova visão para as atuais e futuras gerações” – gerações totalmente em risco de terem suas cabeças mal-feitas.

Kézia Rocha Carvalho

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer. O Poder Soberano e a Vida Nua I. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: ed. UFMG, 2002.

MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: Repensar a reforma, reformar o pensamento. 17ªed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.

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2 Respostas para “O cantinho do pensamento

  1. Fantástico o seu texto. Como você disse, “a criança preparada para detestar o ato de pensar” é muito bem-vinda nesta sociedade de consumo, na qual se compra por impulso, por hábito. Reflexão e autonomia andam de mãos dadas, mas parecem estar cada vez mais distantes do nosso sistema educacional.
    Adriana Torquato Resende

  2. Simplesmente perfeita a sua reflexão. Por favor, Kézia, divulgue-o. É urgente!

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